A sociedade norte-americana apresenta conceitos nada democráticos nem salutares para a vida em comunidade, onde os inocentes acabam por pagar a insanidade de quem tem acesso ao mercado legalizado das armas. Dizem que comprar armas é um direito dos cidadãos para se poderem proteger. Não sei de quê nem de quem se quem compra armas passa, ele próprio, a constituir um foco de perigo. As pessoas lamentam-se do ocorrido mas nada fazem para modificar e melhorar a situação.
Ao contrário do que seria de esperar a atitude social não mudou, após a tragédia num cinema da cidade de Aurora no estado do Colorado o que ocorreu foi uma corrida à compra de armas, como se isso resolvesse o problema!
João Galizes
“Vende-se” / “Vendido”
«Novamente
o mundo assiste perplexo a mais um massacre nos Estados Unidos. E, novamente, a
sociedade norte-americana chora os seus mortos. Nenhuma novidade. Lá são
inúmeros os casos de pessoas, aparentemente insuspeitas, que planearam
cuidadosamente cada detalhe de uma chacina e a colocaram em prática com objectos encontrados
em estabelecimentos comerciais.
»No dia 20 de Julho, um jovem de nome James
Holmes, equipado com colete à prova de balas, capacete, máscara anti-gás e
armado de pistola, espingarda e carabina, entrou num cinema em Aurora, no
Colorado, lançou granadas de gás e disparou contra os espectadores matando 12
deles e ferindo outras dezenas. De acordo com a polícia, James Holmes não tinha
antecedentes criminais, o que significa dizer que até o dia do massacre James
não infringiu a lei, excepto uma multa de trânsito em 2011. O jovem não comprou
o armamento e as munições das mãos de traficantes ou contrabandistas. Foi tudo adquirido
dentro da lei em lojas legalizadas.
»James Holmes comprou quatro armas, dentre elas uma carabina
semi-automática calibre .223. Armas com esse calibre podem ser encontradas em
qualquer mercado nos Estados Unidos e a sua aquisição não requer nenhum exame
psicotécnico, depende apenas do dinheiro. Na Bas Pro Shop, uma das lojas
visitadas por James, uma carabina desse calibre, semi-automática, Remington
R-15 VTR Predator, custa US$
1.149,99. Apesar
de ser vendida como arma de caça, o seu calibre foi desenvolvido por empresas
dos Estados Unidos para o exército daquele país que, depois da Segunda Guerra
Mundial, concluiu que precisava de um munição mais leve que a tradicional 7.62,
afim de que os seus soldados tivessem mais precisão de tiro e pudessem carregar
consigo mais balas. O campo de provas desse novo calibre foi a selva vietnamita
nos anos 60.
O mercado não se importa em produzir artigos
que possam, fatalmente, resultar na morte dos seus consumidores. O sistema económico
vigente consiste no tripé: produção em massa/consumo/descarte. Para mantê-lo é
preciso criar perfis de consumo que nem sempre são baseados em necessidades
reais. É preciso produzir, não importa a que preço. Basta rotular um maço de
cigarro com “O Ministério da Saúde adverte…” ou uma garrafa de bebidas alcoólicas
com “Se beber não conduza” para que se redima a culpa da indústria pelas mortes
decorrentes de doenças respiratórias e acidentes de trânsito. A indústria de
alimentos despeja todos os dias nos supermercados produtos que serão
responsáveis por doenças cardíacas, cancerígenas, e de diabetes. A indústria
química, proibida de vender agrotóxicos nos países ricos, vende-os a preço de
banana para as nações do Terceiro Mundo.
»Nos Estados Unidos a indústria cinematográfica e de armamento andaram
sempre de mãos dadas. Hollywood tem sido uma montra para o lobby das
armas. É a forma mais eficiente de publicidade. Raramente um filme americano na
TV ou no cinema não tem pelo menos um personagem disparando armas, mesmo em
comédias ou filmes românticos como Ghost e Titanic. Assim como
os filmes de Humphrey Bogart e James Dean estimularam muita gente a fumar,
Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Bruce Willis certamente inspiraram
outros tantos a comprar pelo menos uma pistola.
»E aqui fica a pergunta. Por quê tanta
perplexidade com a acção de James Holmes? O atirador do Colorado não fez nada
que a sociedade e o mercado não conhecessem e incentivassem. Ele foi até à
loja, comprou máquinas de matar de forma legal e fez exactamente o que se
espera delas: matou. James Holmes é portanto um consumidor, e o mercado
agradece. A indústria de armas não vai parar por causa das vidas ceifadas à
bala naquele cinema em Aurora, muito menos pelos mortos em ataques de aviões
não-
-tripulados norte-americanos no Paquistão e no Afeganistão. É tudo negócio, nada pessoal.
-tripulados norte-americanos no Paquistão e no Afeganistão. É tudo negócio, nada pessoal.
»Mais importante do que nos debruçarmos sobre o perfil psicológico
de James Holmes é analisar o carácter da Constituição
que tornou possível a
sua acção brutal.»
Carlos Latuff
Fonte: CartaCapital